Entrevista de Cidinha da Silva a *Anderson Feliciano, parte I.




Anderson Feliciano - eu ando pelo mundo, assim como na canção esquadros, prestando atenção em cores que nem sei o nome e também em flores, livros e sorrisos e na maneira que as pessoas tem tratado umas as outras. e você? tem andado pelo mundo prestando atenção em que?

Cidinha da Silva - Estou atenta a estas coisas também. Olho com olhos de ver o que me faz rir, o que me diverte e me faz amar. Também o que me intriga e faz pensar.

Anderson - em seu livro "livro de cenas fulgor: cadernos de contemplações" lúcia castello branco brinda-nos com suas listas poéticas. gostaria que você listasse algumas coisas que trazem uma doce lembrança da sua infância.

Cidinha - Meu pai, acima de tudo, e os brinquedos que ele construía para a gente, principalmente o campinho de futebol de madeira, no qual os jogadores eram pregos fixos e usávamos uma moeda de 20 centavos como bola (creio que existia essa moeda) e os dedos ou palitos de picolé para movimentar a bola.  Quando éramos bem pequenos e tínhamos mangueiras no quintal, ele fazia gangorras para mim e meus irmãos e cuidava de embalar a gente, para ninguém se machucar. Com as mangas verdes que caiam do pé, também com chuchus abundantes, ele fazia conosco enormes rebanhos de bois, porcos e vacas. Os pés dos animais eram palitos de fósforos e a gente fazia aqueles verdes todos falarem. Meu pai levava a mim e a meus irmãos ao parque municipal onde brincávamos de balanço, escorregador, zanga-balanga e trepa-trepa. Eventualmente tirávamos fotos para binóculos, montados nos burricos do parque, sob olhos atentos dele.

Entre 6 e 9 anos,as brincadeiras continuaram basicamente com meus irmãos, agora no terreiro de casa que era bem grande, dava para correr. Sempre tínhamos uma bola e petecas, presente das tias. Elas brincavam conosco quando nos visitavam.

Dos 9 aos 13, algumas brincadeiras na rua eram permitidas, principalmente aos domingos: queimada, carrinho de rolemã, peteca e, posteriormente, vôlei.  De quando em vez tínhamos algum quebra-cabeças em casa, e outros brinquedos de montar, versões mais populares do Lego. Eu tinha muitas, muitas revistinhas em quadrinho e lia e relia todas elas. Ah, na escola sempre brinquei de pega-pega e queimada.

A partir dos 12, 13, andava muito de bicicleta, jogava queimada e vôlei com vizinhos e amigos do bairro. Handebol na escola e um pouco de futebol de salão também. Acho que os troféus e medalhas de futebol que meu pai ostentava, orgulhosamente, também nos diziam que podíamos ser vencedores na vida. Esta também é uma lembrança boa.

Uma lembrança doce que envolve minha mãe era o preparo da minha merendeira para o jardim de infância. Ela sempre cantava umas canções tristes com aquela voz linda. Nessa hora eu sempre ficava calada, observando, gostava de vê-la cantar. Sei que vão achar engraçado, mas minha merenda predileta era ovo cozido. Eu controlava o tempo da fervura da água para a gema ficar bem dura, odeio gema mole, nem consigo comer. Minha mãe testava o calor da casca e a tirava, pedacinho por pedacinho. Às vezes fazia um pequeno buraco no ovo e me dava o pedaço retirado da clara para comer. No orifício aberto punha um pouquinho de sal e também passava levemente do lado de fora. Depois embrulhava o ovo cozido num guardanapo de pano branco, com flores em alto relevo bordadas na ponta. Eu era muito feliz naqueles minutos de preparação da merenda.

Minha comida predileta era arroz, feijão, batata frita, ovo também frito (com gema dura), couve e angu, molinho e pelando. Minha mãe cozinhava pouco, a cozinha era reino do meu pai, mas quando ela cozinhava era memorável. Uma das coisas que ela fazia, quando a gente era bem pequeno é um negócio que ela chamava de “fubá suado”, que era uma mistura de fubá, açúcar, manteiga, água, canela ou cravo, quando tinha. A gente esperava esfriar e comia com a mão, fazendo montinhos e era bom demais. Em vezes raras ela fazia pães, massa para pastel, biscoitos fritos e arroz doce. Por falar nisso, meu pai é o cara dos doces. Ele fazia um doce de laranja da terra, tão doce, mas tão doce, que talhava a língua da gente e era impossível comer. Em compensação, ele fazia amendoins e tirinhas de côco com calda de açúcar dos deuses.

Anderson - sua prosa vem se destacando pelo lirismo. de que maneira a poesia do cotidiano interfere na sua obra?

Cidinha - Acho que de todas as maneiras. É o que me mantém viva, respirando.

Anderson - sua literatura tem transitado entre vários gêneros. como isso se dá? há uma predileção por algum?

Cidinha - Sim, quero escrever romances para adultos, mas acho que ainda demorará um pouco, preciso me preparar mais e tenho muitos projetos a desenvolver. Mas adoro criar personagens, seja em que gênero for. Trata-se de um exercício que me diverte e provoca muito. O trânsito entre os gêneros é definido pelo texto, é ele quem decide o que será, considerando também o fôlego que tenho (ou não) para desenvolvê-lo.

Anderson - percebo na sua literatura uma elegância similar a dos compositores cartola e paulinho da viola. como a música influência sua escrita?

Cidinha - Obrigada, é um super elogio ouvir isso e são dois dos meus compositores prediletos. Eu consigo detectar mais influências da música em minha obra, do que de autores, tamanha a importância dela para mim. Música boa é tudo! É uma oitava superior na humanidade da gente. Sempre ouvi muita música e, felizmente, música boa. Recentemente escrevi uma crônica chamada Era do rádio íntima, na qual falo dessas influências, tá no blogue – (cidinhadasilva.blogspot.com). Nas estações de rádio AM, preferidas da minha mãe, ouvia Clara Nunes, Elizeth, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Angela Maria, Jamelão, Agepê, Martinho da Vila, Beth Carvalho, a queridíssima Alcione, Roberto Ribeiro e um pouquinho ainda dos Trios Esperança, Ternura e Mocotó. Ouvia muita valsa e bolero. E minha mãe cantava tudo o que gostava, com voz bonita e afinada. Já nas minhas estações de escolha conheci mais samba de primeira linha, incluindo Paulinho, também Jazz, música erudita e Chorinho, a música dos deuses. Além de Milton Nascimento e Gilberto Gil, capítulos singulares da MPB. Acho que a música é muito presente no ritmo das minhas narrativas.

Uma história que me acompanha é que, quando criança, tinha uma tia que era alucinada pela Alcione e pelo Martinho da Vila e eu sei o repertório deles, dos primeiros discos, por esse motivo. Então, eu conheci belos cânticos de Umbanda por um disco do Martinho – “O sino da igrejinha faz Belém-blem-blau / deu meia noite / o galo já cantou / seu Tranca-rua que é o dono da gira / oi corre-gira que Ogum mandou.” Isso é bonito demais.

Com Alcione, por sua vez, eu conheci a poesia de Gil. Ele fez uma canção para o primeiro disco dela, chamada Entre a sola e o salto, conta a história de um amor que se passa entre o chão e salto alto de uma passista de escola de samba. “Vê por aquela janela / entre a sola e o salto do sapato alto dela / vê / por ali, pelo vão / entre a sola e o salto do sapato alto dela e o chão”... Aquilo pegava meu coração de criança de jeito e me acompanhou a vida inteira. Um dia, quando estava escrevendo os textos do Colonos e Quilombolas (2010), do qual sou co-autora, num texto sobre o carnaval porto-alegrense dos anos 40, 50, veio a chance de dialogar com essa canção de Gil criando algo, mesmo dentro dos meus limites de poeta, que se aproximasse do magistral da poesia dele. Nasceu então o Zé Remeleixo, que durante o ano era o Zé Ninguém-sabe, um sapateiro tristonho, solitário e caladão. O Zé Remeleixo era o homem guardado entre a pancada do martelo e o prego dos sapatos.

Outra história que me marca é Por te amar, publicada no Margem, 2011. Quando Luiz Carlos da Vila morreu, fiquei atordoada, era como se tivesse perdido alguém da família. Sentia uma angústia que não passava e não sabia o que fazer com ela. Acho que o fato de ele ter morrido jovem demais, em decorrência de câncer, como minha mãe, me pegava  maneira mas doída. Resolvi que queria escrever um texto só com trechos de músicas dele e passei a ouvir minhas músicas prediletas, principalmente as que ele cantava. E daí nasceu Por te amar  - “Por te amar, eu pintei um azul do céu se admirar. Até o mar adocei e das pedras leite eu fiz brotar. De um vulgar fiz um rei, e do nada, um império para te dar. Enfim, um horizonte melhor me sorriu. Minha dor virou gota no mar. Saí daquela maré, Luiz, não vivo mais à sombra dos ais”...

Ainda outra, é um texto do Tambor (2008) que, em breve, assumirei como poema. A música A flor e o espinho, do Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, é uma das mais lindas do cancioneiro brasileiro, para mim. E eu queria dialogar com eles, queria escrever algo que falasse de uma dor de amor da forma mais funda que eu conseguisse e daí nasceu Tire seu sorriso do caminho - Tire seu sorriso do caminho / Hoje não tem samba pro meu enredo / Degredo / Não tem alegoria pra minha tristeza / Eu sou só dor / Latejante / Tire seu sorriso do caminho /  Hoje meu funk tá sem movimento de bacia / Não tem rima pro meu rap /  Não tem Ronaldinho do Barcelona  no meu jogo / Meu reggae tá sem sabor /  Tire seu sorriso do caminho / Eu quero passar / Adeus, amor.

* Anderson Feliciano é dramaturgo e escritor (amigo para lá de querido).

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