Um hino


O Atlético Mineiro é vice-campeão do Brasileirão. É uma façanha. A cronista não pode deixar de fora uma nota sobre o tema. Desde os tempos gloriosos de Reinaldo (e o pessoal de menos de 30 anos, sequer conseguiu retê-los na memória), o Galo não ia tão longe. Belo Horizonte deve estar alvinegra, todos vão para o trabalho, para a escola, vestindo a camisa do time que conseguiu dar sentido de comemoração a um vice-campeonato. Mas, deixo aqui apenas a nota, a crônica vem abaixo.  


Por Cidinha da Silva

Dona Ernestina, funcionária dedicada, vê-se obrigada a telefonar aos ex-colegas comunicando a morte do patrão. “Morreu, foi?” Diz o ex-office-boy. “Como ele morreu, dona Ernestina?” “Atropelado, meu filho. Na Av. Paraná, em frente ao Ministério do Trabalho.” Talvez saísse de mais uma das incontáveis audiências de conciliação trabalhista, quando ele decretava falência da empresa para não pagar os direitos dos funcionários, pensa o ex-office-boy. Esse não vai ao velório. Não adianta.

Outra vez ela pega o caderninho de notas, folheia, encontra o nome do Vilson, ex-faxineiro. Telefona, é recebida entusiasticamente pelo ex-colega, sempre muito simpático. “Morreu? Já foi tarde, hein, dona Ernestina?” “Oh, meu filho, não fale assim que Deus castiga.” “Castiga quem, dona Ernestina? Carcamano, filho da mãe. Acidente coisa nenhuma. Ele deve ter-se matado, o covarde.” “Mas Vilson, por que tanta mágoa?” A pergunta morre sem resposta. O Vilson desliga o telefone, está de saída. Diz ter sido um prazer falar com ela.

Não falta mais ninguém para avisar. Parece que só mesmo ela e a família do morto irão ao velório. Dona Ernestina brinca com a manivela da caixa registradora, pensa no futuro. Sentirá falta da loja, mas felizmente não ficará desamparada, já tem idade para a aposentadoria. Faz planos com o dinheirinho do acerto. Vai pedir à filha do seu Scliar que a demita para aumentar o montante. Só mais tarde ela saberá que o patrão nunca recolheu o Fundo de Garantia. 

Na rua passa um menino assoviando o hino do Galo – “vencer, vencer, vencer, esse é o nosso ideal”... Ela sorri ao lembrar do Vilson, atleticano fanático. “Lutar, lutar, lutar, com toda a nossa raça pra vencer”... Recorda também o dia da crise hipertensiva do seu Scliar. Ele socava as peças de tecido. Até jogou algumas no chão, recolocadas no lugar por ela e pelo Vilson. Gritava para os funcionários: “Eu sou um fracassado! Não consegui nada na vida. Vou terminar meus dias como meu avô. Uma lojinha de tecidos na Lagoinha e um funcionário preto-encardido vestindo uma camisa surrada do Atlético, entupindo meus ouvidos com o hino do time.” 

O Vilson viu a ambulância chegar e levar o patrão para o João XXIII. Ficou calado o dia inteiro, cozinhando as palavras amargas. No final da tarde, depois de umas doses de soro, o seu Scliar voltou, pálido como cera. Dona Ernestina recebeu o patrão, mas estava mesmo intrigada com o comportamento do Vilson, que não havia dado palavra durante o serviço. 

O Vilson trocou de roupa antes do horário do ponto. Juntou os trens dele, a garrafa térmica, a marmita, o vidrinho de pimenta malagueta, mais uma ou outra coisinha sua, arranjou tudo dentro da mochila. Puxou uma cadeira, sentou, não desviou os olhos do assustado seu Scliar. Assobiou o hino do Atlético, inteirinho. Na hora do “galo forte, vingador”, pegou a carteira de trabalho no bolso da calça e deixou sobre o balcão. Foi embora.

Do livro: Oh, margem! Reinventa os rios!

Comentários

Postagens mais visitadas